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Estudos e Reflexões FLÁVIO MELLO

TRÊS CÂNONES OU TRÊS COLUNAS HUMANAS

Category: By Flávio Mello


Cânone (Ficção) conjunto de obras que são

consideradas "genuínas", "oficiais" dentro

de um determinado universo fictício.


Criar aqui uma lista de cânones seria de minha parte totalmente irresponsável, uma vez que tal lista é de certa forma subjetiva; também não vou criar uma dezena de possibilidades onde o leitor possa deduzir se há cânones ou não nos livros e autores que por fim eu acabar citando. O que vou fazer na verdade é trazer três livros, ou três autores, que julgo importantes serem lidos, obras que são relevantes para a formação parcial de uma mentalidade produtora e criativa, de caráter, de preocupação humana e social.


Acredito realmente que cada escritor traga em seu cerne uma lista de autores que o ajudaram a se formar como produtores de sonhos, de dominadores da palavra, mesmo sendo ela um touro feito de chamas, eu em certo ponto, tenho dentro de mim três autores que julgo de extrema importância para a formação de um caráter realmente humano, de aprofundamento ao ser, também de reflexão e auto-avaliação. Assim, descrevê-los-ei de forma cronológica, sem apegar-me a importância ou escola literária, primeiro – A Metamorfose de Franz Kafka, livro que julgo ser de uma racionalidade quase que atípica, mesmo se tratando de um livro que tem como personagem principal um homem-verme, ou barata conforme a tradução e o gosto popular, esse livro revela em sua entranha a que ponto um homem, ou ser humano, pode chegar à introspecção, isolamento, solidão, desvalorização moral, achincalhamento e não representar impacto persuasivo em sua vida. A metáfora homem/verme (leia-se barata), ou verme/homem, é nada mais que o se diminuir perante o todo.


O segundo livro é o Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, que traz em si as mesmas características de A Metamorfose, entretanto, no bojo coletivo, de tal maneira que o homem/verme passa a ser grupal e todos voltam aoseuestados primitivos, isso em sua totalidade e essência. Guiados pelos olhos de uma mulher, que pode ser representada como a esperança ou mãe de todos os homens, pois é ela que aprende a olhar todos com olhos complacentes e ternos, sem o julgamento visceral que o ser humano traz consigo, é ela quem socorre e adverte dos maus, que perdoa o marido que prova de outra carne aos seus olhos, revelando seu estado animal, é ela quem revela o que realmente somos ao nos lavar nas águas mornas da última chuva.


Por último, e não menos importante, temos o livro de contos de Dalton Trevisan, Cemitério de Elefantes, podemos encontrar nessa obra do Vampiro de Curitiba personagens que vivem à margem da sociedade, que revelam a fragilidade e a inocência humana, o próprio estado de “ser humano”, com suas fraquezas, arrependimentos, duelos, medos, complexos e necessidades tão afloradas no cotidiano de um mundo cada vez mais solitário e hedônico. Um livro recheado de contos curtos, porém profundamente preocupados em revelar o que de fato somos, ou o que de fato pensamos ser.


Podemos perceber que a “lista” apresentada não nos revela cânones consagrados pela literatura mundial, ou leitores mundiais, como Dom Quixote, A Divina Comédia, Guerra e Paz, Eneida, Odisséia e tantos outros que já sabemos de que se trata antes mesmo de os lermos. Essa tríade apresentada é afortunada de tal modo que ao ser lida pode revelar aos olhos “cegos”, ou as pessoas “perdidas” ou “esquecidas” que há muito mais em nós do que podemos imaginar, sem parodiar Shakespeare, ou Machado de Assis, cânones não citados aqui. Esses livros podem ser lidos como “manuais de reparos humanos”, pois através deles podemos nos identificar facilmente com um Gregor Samsa, uma Rapariga de óculos escuros, ou com o corpo sem vida de Dario. Cada um pode formar suas presunções, lendo ou imaginado o que aqui foi dito.


foto: Jean-Louis Barrault in Kafka's, 1946
 

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