VERVE.TENTE
Estudos e Reflexões FLÁVIO MELLO

Estudo sociolingüístico da letra da música O Meu Guri de Francisco Buarque de Holanda, localização no texto de marcas do dialeto social popular.

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por Flávio Mello



O MEU GURI
Chico Buarque - 1981




Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando, ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá, olha aí, olha aí


Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri e ele chega


Chega suado e veloz do batente e traz
sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí


Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri e ele chega


Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí


Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri e ele chega


Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que ta rindo
Acho que tá lindo, de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço?
Ele me disse que chegava lá, olha aí, olha aí


Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri


Explanação sobre a letra


O MEU GURI


1º Contexto Geral

A pequena narrativa, por que não dizer pequeno conto, se passa no morro carioca “Chega no morro com o carregamento”, em tempos atuais, a narrativa é cronológica “De repente acordo, olho pro lado”, onde descreve o dia-a-dia, o ardil, e, os progressos das personagens; Psicológica, basta nos depararmos quando a mãe evoca “E na sua meninice ele um dia me disse / Que chegava lá...” anunciando que num passado (superficialmente próximo), em meio à pobreza e a vida difícil, ele, o filho jura que dias melhores virão, virão de uma forma ou de outra.


Sendo assim, é fácil deduzirmos que tendo como maus exemplos o tráfico, os assassinatos, corrupção, extorsão policial, prostituição, a ida e vinda do tal dinheiro fácil, o molde desse Guri tenha sido o que o autor vem a retratar na letra. Chico Buarque faz o raio-x não só das favelas cariocas, mas de todas as favelas, ou grandes acúmulos de pessoas carentes, miseráveis etc., do Brasil.


A personagem principal um “delituoso”, menor, “Chega estampado, manchete, retrato” e como secundários a mãe, ainda jovem, “Quando, seu moço, nasceu meu rebento”, e o repórter a quem a genitora do “guri” narra sua pequena saga, do berço pobre a morte pela policia, a quem a mãe chama de seu moço “Desde o começo, eu não disse, seu moço?”.


Em suma, a letra aponta de maneira poética, até mesmo delicada, fatos cotidianos dessa grande classe carente, a tempos abdicadas das coisas mais simples, como um emprego, saneamento básico, escolas, faculdades... Uns com tanto, outros com quase nada, outros com mais nada ainda. A geografia “civil” do Rio de Janeiro é o marco do contraste econômico brasileiro, creio ser o mais significativo, de um lado o morro, a favela, o tráfico, de outro o Cristo, que muitos do morro dizem estar de costas para eles, Copacabana, Ipanema, linha amarela divisa de bens, amarela divisa de saúde.


1º Marcas do dialeto social popular


As letras, de Chico Buarque em cunho social, como elucidação do que realmente é o carente são muito fáceis de se detectar, já que esse é o pano de fundo do compositor, escritor, dramaturgo e músico, se nos debruçarmos sobre o texto Calabar, por exemplo, veremos marcas do tal “dito popular”, como a personagem Bárbara, Ana e o próprio Calabar, que ver de CALA a boca BAR-bara, onde a censura, à admoestação, impedia os artistas de abordarem os fatos sociais, políticos e até mesmo artísticos, não muito longe encontraremos A Ópera do Malandro, nela nos deparamos com Geni, prostituta, o Malandro carioca entre outros tipos fáceis de se detectar em nosso cotidiano, muitos são os textos onde Chico aborda a classe carente, e, o contraste entre classes, nesse ponto um tipo significativo é o seu primeiro romance Estorvo, onde a personagem migra entre a classe alta e a classe baixa, descrevendo a coluna econômica brasileira de forma dilacerante.


O que acima retrato é tão somente, a parte de uma obra tão significativa de um autor que tem como preocupação, ao menos o tinha, o revelar, o desvendar o que se passa, se passou ou quem sabe se passará numa megalópole milionária que é o Brasil inaccessível.


A letra O Meu Guri é um ponto minúsculo, micro, de uma obra voltada a preocupação social, de um compositor politizado, lido..., de estirpe. A raiz principal, da letra aqui abordada, é, tão somente revelar o que é de fato a vida no morro carioca, com suas figuras bem conhecidas por todos, porém o autor com sua malicia nos leva muito além de que os olhos nus podem ver, como por exemplo, a mãe menina que concebe outra criança, criança que cuida de criança, criança que vê no filho seu homem, o fálico invertido, de mãe para filho / marido. Por fim, o que os olhos de poder e governo não querem ver, encobrindo com luzes e escadas-rolantes para inglês ver.


As marcas dialéticas são fáceis de ser encontradas, basta analisar o conteúdo do solilóquio da mãe desse guri, o uso do português coloquial “Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro”, “Boto ele no colo pra ele me ninar”, o uso constante de seu moço, que arremete uma marca social de pessoa simples se explicando a uma pessoa importante, de classe alta. O próprio título carrega essa marca, O Meu Guri, percebesse a contigüidade popular, “Chega no morro com o carregamento / Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador” estes dois versos transplantam para a letra as marcas de algumas gírias de grupos periféricos, como pneu = carro, pulseira = jóias etc., poderíamos até, quem sabe, dizer que esse cimento venha a ser a droga vendida, e, consumida no morro.


Percebesse na obra a diacronia, como se estivéssemos lendo, ou, assistindo um tele-jornal sensacionalista, onde encontramos esses tipos “Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais” crianças que se perdem num mundo de treva, de dor e de um futuro abortado.



letra MEU GURI in.: HOLLANDA, Chico Buarque de - Tantas Palavras; São Paulo : Companhia das Letras, 2006. pg. 318


foto in.: olhares.aeiou.pt/.../foto450052.html

 

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