VERVE.TENTE
Estudos e Reflexões FLÁVIO MELLO

O TEMPO, A ARTE – E BURGO DE AREIA

Category: By Flávio Mello

Livre associação da revista continuum

Primeira parte


“O homem de ontem não é o homem de hoje.”

Jorge Luis Borges

“presente das coisas passadas,
presente das presentes,
presentes das futuras.”

Santo Agostinho




Pois bem, caminhando por um dos milhares de corredores de uma colossal biblioteca, que em seu cerne agrupa a iluminação deixada por uma infinidade de pensadores, não importando seus campos – ciência, arte, arquitetura, filosofia, sociologia, literatura, astrologia e um sem número de áreas, dependendo do ângulo que se vê, caminhando por esse corredor, dobrando suas esquinas, percorrendo suas paredes compostas por prateleiras forradas de tomos de diferentes aspectos, formas, espessuras, materiais que vão desde o mais fino e rústico couro e do pergaminho ao papel mais rico e ornado com partículas ricas e singulares, há uma concentração de tempos que ferem como punhais com suas palavras a película delicada do tempo, assim como uma tempestade de areia que chega de surpresa envolvendo a tudo e a todos, essa concentração de tempo traz em seu bojo, isso na disposição desses livros nas prateleiras, visinhos incabíveis como Homero, Dante, Borges, Saramago e mesmo Machado de Assis, autores, pensadores de um ontem presente, de um presente continuo e de um futuro palpável, um futuro vivo e físico, de pé diante de seus olhos, como isso? Como é possível as palavras serem fios amolados há perfurar o tempo, fácil dedução e compreensão, é a carne que apodrece é a matéria que finda... o espírito desses escritores ganha a imortalidade no papel rasgado a bico de pena, lavado de nanquim ou perfurado por tipos e máquinas de escrever.




Com isso é fácil visualizar em um lençol de luz uma cena inusitada como o minotauro atravessar as paredes grossas de livros e percorrer os corredores dessa gigantesca biblioteca como em seu labirinto, ou quem sabe ver Pessoa e seus eus perambulando as paginas pajeando as palavras como ovelhas e rindo de gigantes que se espremem nas paredes das brochuras.

O que isso significa realmente (se é que é possível falar de realidade dentro da geografia da literatura), darei um exemplo, dentro da infinitude que há no universo ficcional,




“- Nesse caso – disse-lhe resolutadamente –, o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.
- Não – respondeu-me com minha própria voz um pouco distante.
Depois de um tempo, insistiu:
- Eu estou em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com cabeça grisalha. (BORGES, 2001, p. 8)”





muito bem, eis um exemplo grandioso da geografia da literatura, esse dialogo que aparentemente é um diálogo normal, visto assim despregado do contexto original “apresenta” dois indivíduos a trocar informações em pontos diferentes e sentados em um banco de praça, contudo não há de fato duas pessoas, trata-se do conto O Outro de Borges, onde ele encontra ele mesmo em outro lugar em outra data sentados em um banco onde há um surreal encontro e uma surreal troca de espantos, o mesmo espanto que o leitor sente ao perceber esse “fato obscuro” da ficção borgiana.


Para finalizarmos essa visão onírica da geografia literária devemos compreender que o tempo é maleável, como uma ponte feita de poeira, ou como uma tempestade de areia que pode soterrar uma cidade e deixá-la no esquecimento. O que desejamos trazer de dentro dessa tempestade de areia, feita de palavras, é a ruptura que o tempo sofre quando um leitor ou um escritor em uma época especifica abre um livro “clássico”, para podermos compreender melhor tal linguagem, e lê em voz alta um verso, uma estrofe ou um parágrafo, quando Machado de Assim revive Shakespeare em seu conto, atravessa as paredes grossas da realidade junto às areias que formam a geografia da literatura e do tempo.




A MORTE DE CRONOS




Segunda parte





A tal passagem de que falamos, aquela que fere o tempo, que transpassa a linearidade comum das coisas, também se faz presente ao nos depararmos com outro tipo de arte, já que falamos na literatura, as artes plásticas, por exemplo, pode servir de segundo plano ao que narraremos agora, pois bem, eis que nos deparemos com o Portal do Inferno[1] de Rodin, esculpido em sagrada inspiração sobre a Divina Comédia de Dante, se nos mantivermos parados diante dessa magnífica peça, podemos perceber que tal portal hoje exposto como simples artefato de arte, pictoricamente pode nos servir de uma passagem para um universo parecido sobre o qual falamos a pouco, isto é, ao passarmos psicologicamente tal portal nos veremos perambulando ao lado de Dante e Virgilio nos caminho pecaminosos de um inferno ou de um purgatório rumo a ascensão e ao encontro de Beatriz.

Ao falarmos em ascensão podemos ver o tempo dentro da concha sacra, dos ícones de pinturas chapadas que traziam em seu cerne a mais profunda elevação espiritual, com fundos dourados e auras grandiosas que traziam nas entidades representadas um teor divinizado, ora vejamos a idéia do artista sacro como a procura pela estética arcaica, pela forma transportada de forma que o espectador acredite que ali esteja realmente o santo, o Cristo etc.




Quando Monet pinta sua serie de telas representando a passagem de tempo sobre a Catedral de Rouen ele, em uma linguagem primária de fotografia, revela a morte do tempo nas cores que vão se tornando mais escuras e nas pinceladas mais tênues e calmas que só o decorrer do período pode oferecer, isto é, do amanhecer ao anoitecer o tempo envelhece assim como a matéria que ele desgasta e esconde com suas sombras.



De forma hermética podemos deduzir que o furo no espaço/tempo/realidade onde é possível ultrapassarmos os limites e nos transportarmos para um mundo “virtual”, através de portais, como a internet, por exemplo, ou mesmo o portal do inferno de Rodin, e nesses universos usarmos a realidade no irreal/temporal – estando próximo o bastante do mesmo sentimento hedônico, do mesmo consumismo, em busca de um espaço cobiçado em nosso mundo real.


[1] A Porta do Inferno. Escultura de Auguste Rodin (séculos XIX-XX). Museu Rodin, Paris. Em gesso. 576 x 380 x 130 cm.





texto continua...
 

1 comment so far.

  1. Danielli V.Cabral 20 de setembro de 2008 às 18:34
    Parabéns pelo trabalho!

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